
Se fosse para fazer uma lista dos artistas
que mais contribuíram para o desenvolvimento das histórias em quadrinhos, o
nome de Will Eisner estaria no topo. Não por coincidência
o mais importante prêmio dos HQs leva seu nome. Receber um Eisner é o sonho de qualquer artista nesse
ramo. Ler uma de suas obras é um aprendizado. Seu domínio pela arte sequencial,
sua maneira única de contar histórias, seu ritmo inconfundível e seu jeito de
transformar cada página em vislumbre são toques geniais. E uma de suas obras
mais emblemáticas e importantes é Ao coração da tempestade. Em uma das diversas introduções em reedições ele
explica que tinha a intenção de contar a história de vida de um jovem que viveu
no início do século e que lutou na segunda Guerra
Mundial, mas não teve como ele não se inserir nessa história e podemos
considerar essa Graphic Novel (termo que só se tornou conhecido por
sua causa) a sua biografia.
E sua história se confunde com a história
americana no começo do século XX. A narrativa começa com soldados sendo levados
de trem para um lugar que eles mal sabiam onde ficava, e tinham em mente que
lutaram contra os nazistas para defender o sonho e a liberdade americana. Mas
enquanto olha os lugares pela janela do trem, o jovem Will vê sua vida passar na sua frente, onde
os momentos mais marcantes são relembrados como num filme. Lembra de sua
juventude como filho de um imigrante judeu no Bronx e das dificuldades de sua família,
seja financeiramente, pois viviam na pobreza, seja no preconceito contra os
judeus. O antissemitismo é um assunto recorrente nas histórias de Will Eisner, e em Ao coração da tempestade podemos perceber o quanto ele e sua
família penaram devido a discriminação. Mas seu pai sempre estava preparado
para lhe dar alguma lição de vida, muito calmo e esperançoso de que as coisas
haveriam de melhorar.

Legal ver como ele informa o ano ou a
época em que relato está ocorrendo, de forma indireta, com um jornal jogado em
um canto, ou a notícia da Guerra ou da grande depressão de 1929. Para
quem já conhece o estilos de Eisner,
já sabe que a expressão corporal dos personagens e seus olhares e trejeitos
ajudam a contar a história. A característica dos personagens são bem
trabalhadas, seus sentimentos são transmitidos em suas ações e palavras de uma
forma que você consegue determinar o caráter e sonhos de cada um. Eisner era um mestre nessa arte e nos dá uma
experiência de como os quadrinhos podem ser trabalhados, com todos os seus
conceitos e caminhos, utilizando as páginas com maestria e abusando do estilo
que apenas os quadrinhos podem oferecer. Em uma sequência temos o pai de Will planejando abrir uma loja de móveis
usados, virando a página na sequência seguinte vemos o pequeno Will brincando na neve e seu pai
conversando com o irmão em frente à loja, informando que já haviam aberto o
negócio há um ano e que as vendas não iam bem. O ritmo é rápido, e mesmo assim
você não se perde pé não se sente jogado de um lado para o outro. Flui como
suas próprias memórias, isso tudo devido a maestria com que Will monta sua biografia, procurando
colocar cada quadro no exato lugar, sem precisar economizar na arte para caber
na página, e acredito que mesmo se ele tivesse que contar sua história num
número limitado de páginas, nós não perceberíamos.
E as memórias de Will demonstram o quanto cada passagem
marcou sua vida, a ponto de serem inseridos na história. Os ensinamentos
pacifistas do seu pai, e das reclamações de sua mãe, sempre tentando pressionar
o marido a seguir os passos de pessoas que se tornaram importantes e com
sucesso. A história que sua mãe conta, sobre seu passado e o destino que seus
irmãos tiveram e triste e comovente, e seu pai, um sonhador incorrigível,
demonstra com sua própria história, como a religião é a guerra mudou sua vida,
mesmo não sendo ele o protagonista em nenhuma das duas. Evitando os
problemas que os judeus estavam para sofrer na Europa ele foge para a América, e mais uma vez
tentando fugir da guerra ele se casa para não ser convocado. Não era covarde,
mas não entendia porque não resolver tudo pacificamente.
E as pessoas que passaram por sua vida e
deixaram essas marcas desfilam nas páginas nós fazendo relembrar as pessoas que
passaram em nossas próprias vidas. Como a garota que conhecemos em nossa
infância e se tornou um primeiro amor, aquele colega que brigamos e ficamos
amigos, no caso de Will era o filho de um alemão que juntos
construíram um pequeno barco. A tempestade do título nada mais é que os
problemas que todos nós passamos no decorrer de nossas vidas e de maneira tão
pessoal que nos encontramos bem no coração dessa tempestade (a chuva é também
recorrente nas obras de Eisner).
Quase no fim vemos Will se tornar um cartunista trabalhando
várias horas por dia sem ter uma vida social ou tempo para si, assinando seus
desenhos de formas diferentes para dar a impressão de terem mais funcionário em
sua pequena empresa. Mas ao ler essa Graphic Novel, no fim o que fica
são nossas próprias lembranças. Ele conta sua história fazendo o leitor lembrar
das suas próprias experiências. Só um gênio faria isso.

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